quarta-feira

o sam

Começou a história pelo meio, já na parte em que o Saci puxa as cobertas das crianças que não querem dormir. Falava numa voz branda, algumas vezes alterando para um tom dramático, uma onomatopéia ou um berro. O artista.
Os alunos excitados reagiam aos gritos nos momentos de maior tensão. A maior parte ficava quieta, impressionada. Um aluno corajoso dormia, é verdade, mas Pedro achava que esse não precisava do Saci.
Aplausos no final.
Seria uma manhã sem problemas não fosse a curiosidade do nº 21 da chamada, oito anos, que levantou a mão quando a história terminou e perguntou se a sôra – os alunos constantemente se enganavam, estavam acostumados com professoras – já tinha visto o Saci.
– Não, disse.
Pedro não gostava de mentir para crianças, preferia ser sincero. Mas também não responderia diretamente ao aluno – sim, acho que já vi o Saci – porque isso traria algumas outras perguntas que pareceriam infindáveis e já era quase meio-dia.
O Saci não, mas o Sam sim. Pensou nisso enquanto guardava o material, achou ter dito em voz alta, sem querer, mas olhou em volta e viu que nenhum dos alunos o observava. Enganou-se.
Na saída, depois de ter andado uma quadra, uma aluna o alcançou – a nº 15, nove anos, miúda, que nesse início de ano o acompanhava numa parte do trajeto na saída da escola. Ela lhe perguntou quem era o Sam.
– Quem... rãam – o pigarro era um cacoete – quem?
Defendeu-se com uma pergunta.
– Eu ouvi o senhor falar nele, no Sam.
– Não sei o que é isso – desconversou num tom de voz com bastante autoridade. Irritava-se quando o chamavam de senhor.
Na lotação, em direção ao outro trabalho, ficou se culpando – não acredito que falei nele, sou um idiota mesmo. Lembrou que ela era apenas uma criança e que ninguém dava muita bola para o que as crianças falavam, no seu mundo de invencionices.
Lembrou do Sam por alguns instantes, em como foi difícil se livrar dele.
Imaginava-o um trauma superado. Desapareceu. Era como o seu medo de cachorro na infância: curou-se brincando com um enorme pastor alemão de uma das suas primeiras namoradas. Acompanhou a Luli crescer. Sarou daquilo que, lá pelos sete anos, surgira com um vira-lata pulando sobre ele enquanto corria atrás de uma bola. Livrou-se desse tormento com a Luli.
Mas o Sam foi mais complicado, ele o acompanhou por muito tempo. Durante anos, enxergou-o em vários lugares, no ralo, no vão debaixo da escada, por trás da porta entreaberta da cozinha, nas partes mais chatas de varrer, sob as estantes, em cima do armário, até dentro dos bojos de luz acesos Pedro via a cara sorridente do Sam.

Trabalhou inquieto naquela tarde e voltou para casa pensando na pergunta da menina, a nº 15. Quem era o Sam? Quando o Sam lhe surgiu? Nas suas mais antigas lembranças, o Sam já estava lá, ele era apenas um bebê. De início, assustou-se com o Sam, depois se acostumou um pouco, daí se apavorou novamente quando cresceu e entendeu o que ele queria fazer, mas achou que ele não faria nada e durante um tempo acreditou nisso. Então ele fez. E continuou.
Ninguém via o Sam, só ele. Vinha ao seu quarto durante a noite, só no seu, puxava-lhe as cobertas e ninguém via. Teve que ficar em silêncio, não dizer nada sobre o Sam. Sabia que ele não o perdoaria se falasse para alguém. Era uma história que não podia ser contada, não entenderiam. E ela – lembrou-se da aluna – veio lhe perguntar quem era o Sam...
Uma vez, escreveu algo para um trabalho de colégio, coisa de adolescente descobrindo a literatura. Incluiu nele um personagem que vagamente lembrava o Sam. Arrependeu-se. Culpou-se muito por esse erro. Preferiu não tocar mais no assunto. Pensamentos profundos ficavam melhores quietos, não deveriam ser mostrados. Procurou outras histórias para substituir essa que ele não podia contar.
Aproximou-se da educação infantil, achando o público ideal para ouvi-lo. Na universidade, interessou-se pelo uso da narrativa na construção da noção de mundo das crianças. Considerava uma arte contar uma história bem contada, ver como isso estimulava a imaginação. Para ele, as crianças sempre tentavam materializar suas fantasias de alguma forma.
Achou graça quando a professora da cadeira de literatura infantil disse que para contar uma história era preciso vivenciá-la, senti-la. Como se nada realmente pudesse ser apenas inventado. Divertiu-se com um professor suíço falando do processo do conhecimento humano: para explicar a matéria, ele usava uma boneca de pano sem rosto, amarrada com cordas elásticas no teto, na qual ele batia com a mão seguidas vezes. A boneca se espatifava na parede oposta, num squash sem sentido, marcando a retórica do professor e aguçando a imaginação de quem o assistia.
Descobriu que era um bom contador de histórias. Foi só aí que aprendeu a abstrair o Sam. Era uma questão de mudar o olhar e, principalmente, não desviá-lo. Não teve mais medo de demorar os olhos naquele ponto escuro da sala, de fixar a atenção nele e deixar de ver com medo aqueles olhos sempre o espreitando.
Acostumou-se com o Sam de novo, tolerou-o durante mais alguns anos até que passou a ignorar a sua presença.
Na rotina do seu trabalho, pensou várias vezes para que serviria uma história que não podia ser contada. Mas logo suspendia o juízo porque isso o fazia lembrar dele. E sabia que o Sam não era uma história, ele não era nada.
Sorriu um pouco quando reafirmou essa conclusão – ele não era nada – mais uma vez, agora no chuveiro de casa, relaxando do dia estressante de trabalho. A gata Rebecca fazia traquinagens pela casa. No dia seguinte, sábado, haveria festa na escola e todos deveriam estar lá pela manhã. Resolveu esquecer um pouco qualquer assunto e se preparar para dormir. Acordaria muito cedo para organizar da festa, com o auxílio de uma térmica grande e chimarrão.
Na madrugada, a luz que entrava pelas frestas da veneziana formava um rosto no teto do quarto, um velho conhecido seu. Os galhos das árvores do quintal lembravam o tempo que lhe faltava para podá-los. Eles batiam em ritmo compassado na janela, algo relaxante, de início, mas que se transformou numa gargalhada debochada no sonho de Pedro, uma boca enorme que lhe sussurrava alto, repetidas vezes, no ouvido: “te conheço? não te conheço? te conheço sim...” E assim ia.


As atividades da manhã foram de recreação, um trabalho que Pedro considerava como o de babá: fulano desce daí, sicrano ralou o joelho, larga ela, menino, e por aí vai. Não tinha muita paciência para esse tipo de atividade, por isso ficou feliz quando viu que o tempo estava fechando e a chuva não demoraria. Pediu para os alunos recolherem os pertences na sala de aula para ir embora, fez a chamada – nº 13, nº 14... Quando terminou, uma aluna boboca, chata, chegou perto ameaçando lhe fazer uma pergunta. Fugiu, fingiu-se atarefado.
Em alguns minutos escureceu e a diretora autorizou que se tocasse o sinal. As crianças saiam pelo portão e corriam pela avenida para fugir da chuva, entrando nos carros, nas vãs, nas ruas periféricas do bairro em busca do caminho de casa, o vendaval de folhas e poeira as acompanhando, dobrando a esquina junto ela, com as suas brincadeiras e os seus ruídos esganiçados.
Olhou para cima e viu nuvens pesadas correndo a mil, se desmanchando em gotas grossas. Um raio iluminou e trovoou no céu negro. Os poucos alunos que o acompanhavam foram, aos gritos, se espalhando. Pelo canto do olho, alguns metros atrás, notou a nº 15. Apressou o passo, mas logo a chuvarada veio e ali ficou só ele e quase mais ninguém, num breu confuso, se protegendo. A chuva apertou e o dia escureceu mais ainda. Parecia noite fechada com cheiro de chuva. Assim estava muito fácil ver o Sam, ele em cima do poste, ele sorrindo na árvore, sentado sobre o muro da casa, esperando junto à cerca do terreno baldio, espreitando, pronto, estava muito fácil.

Pedro não foi trabalhar na semana seguinte. Participaria de um curso e foi liberado. Sabia que era sempre um transtorno na escola quando alguém faltava, já que não havia substituto e o grupo de funcionários era bem pequeno. Mas a boa escola incentivava a capacitação dos professores. Deu graças a deus por essa pausa: estavam apenas no início do ano e ele já se sentia cansado.
O primeiro dia do encontro foi suspenso por pura esculhambação da organização do evento. Chegou no horário indicado e não havia nada, somente uma funcionária constrangida informando que não haveria nada. Voltou para casa e tirou a manhã para tomar um café sossegado, ler o jornal, deitar mais um pouco com a mulher, relaxar, fazer tudo com calma.
Olhou pela janela o muro coberto de heras da casa do vizinho: nem percebeu como elas cresceram. Imaginou que um colchão só de heras, sem nenhuma outra planta, seria ótimo numa tarde de primavera, ele e a mulher atirados, imóveis, sobre suas folhas frescas, sem preocupações, sob o sol. Imaginou algo quente no verde escuro das heras do vizinho sem saber o porquê. Mas essa fantasia bucólica não combinava com aquela manhã gelada, incomum para aquela época, o chão molhado onde tudo parecia musgo. Percebeu um movimento leve nas folhas e desviou o olhar.
Abriu o jornal, folheou algumas páginas e parou, leu um nome se repetindo e a nº 15 veio a sua cabeça. A reportagem de meia página lhe deu a certeza.
Apavorou-se: o Sam voltou.

sexta-feira

xxx

Uma noite fomos dormir na casa dos x, um casal simpático que conhecemos nas últimas férias em X, com quem trocamos uma experiência bastante interessante naquela temporada.
Não foram apenas algumas tardes modorrentas e chuvosas de praia, sem nada para fazer, e sim a curiosidade da Sra. x por nós que possibilitou o acontecimento de que tanto gostamos de lembrar.
Relembramos aqui.
Entre o convite para sermos seus hóspedes e a nossa decisão passou ao menos um semana. Fomos a uma parte quase despovoada do interior, onde eles eram proprietários de um sítio.
Chegamos no final da tarde de sexta e logo rolou a mesma descontração de dias atrás. Juntos bebemos, antes e depois daquelas loucuras, uns goles de um bom e velho uísque, só para descontrair e esquecer um pouco o gosto forte de carne que ficava na nossa boca.
Ceamos maravilhosamente bem – boas lembranças – achamos tudo muito apetitoso.
A mão magra da mulher nos tocou de uma maneira delicada, com as suas unhas bem feitas e a pele lisa, uma suavidade nas formas que subia pelo braço branco e pelo ombro branco e levava os nossos olhos até aquele pescoço duro e sensual.
Realmente foi percebendo a Sra. x que ela nos percebeu. Ainda na praia, chamamos a sua atenção até uma casebre abandonado, mais para o meio da baía, onde não havia ninguém a não ser nós no meio daquela chuva maldita, sem dar paz há vários dias, mas que serviu a nossa intenção de nos escondermos.
Abafamos os gritos, ela tremia tanto, e o seu corpo revirou quando fincamos nela. Para aumentar o tesão, no meio do escuro nós paramos, demos alguns passos para trás e tentamos ver o seu corpo branco e nu, ouvindo seus gemidos e imaginando como ela deveria estar gostosa naquele momento; nos queria, então atacamos até o final.
Foi ela que nos deu essa segunda oportunidade quando o marido foi ao vilarejo mais próximo comprar mantimentos para o sítio.
Explicar para o Sr. x o que fizemos com a sua esposa não nos preocupava, já que ela própria mostraria isso, aquelas marcas não dariam para esconder. Nós esperávamos a compreensão dele, já que o homem nunca demonstrou qualquer descortesia conosco, talvez apenas num momento, mas provavelmente ele estivesse um pouco ciumento.
Na hospedaria da praia, ela nos olhara de um jeito estranho, observando-nos com seus olhos grandes como se pudessem sair e nos devorar e como se assim o quisessem. Foi num desses olhares que ela nos descobriu. Sacou tudo. Antes éramos qualquer um.
Apresentou-nos ao marido, de quem ficaríamos íntimos dali a uma semana. Apresentou-nos em momentos diferentes, como se fôssemos a mesma pessoa. Logo nós que nos achamos tão diferentes – apesar da aparência e do tanto que temos em comum.
O mesmo nome, a mesma atuação, a gente se revezou nessa história durante uma semana, foi um sarro! Uma hora, um estava com ela no boteco; outra hora, o outro conversava no pé da escada. E ele achando que éramos o mesmo amiguinho gay que ela conhecera na beira da praia. Não que estivesse equivocado, mas quando ele percebeu tudo já era tarde, e para que encrencar, nós riríamos disso juntos depois.
Ficamos um ao lado do outro, seus corpos nus na cabana do sítio, rolamos por quase uma tarde inteira, sem exagero, sobre os fios grossos do tapete da sala que espetavam a nossa pele e guardavam uma parte dos nossos fluidos e dos deles, molhados e secos.
Antes disso, o Sr. x voltou do vilarejo. A cara de espanto quando ele viu como ficou a mulher depois da nossa festinha, no seu vestido mais branco e transparente, era de uma incredulidade boboca.
Não aguentamos esperar, pedimos desculpa, foi uma loucura, mas agora era a vez dele. Houve uma certa resistência, talvez uma moral reprimida, jamais saberemos, mas de qualquer forma o obrigamos e foi rápido. E sem graça.
Num segundo, o homem estava de joelhos chorando feito um bebê desesperado, como rimos. Um segundo mais e ele se aquietou. Repetimos na frente da sua esposa o que fizemos com ela, os olhos dele nos pediam, ela também estava quieta e sem graça.
Agora descansavam.
Nossos corpos estavam empapados, atirados no chão da sala deles, para onde pacientemente nos mudamos. Ficamos para a semana. A lareira acesa, a lenha estalando e nós brincando de deixar os dedos pretos com carvão, para depois lambê-los e chupá-los. Eles fingindo.
Aproveitamos e mordemos as partes preferidas, mordidas fortes, eles pareciam não estar nem aí, o que aumentava o desafio. Os nossos dentes marcaram a pele da mulher como tatuagem, flores grandes e vermelhas, carne com gosto bom, linda e excitante. O homem era rijo e mole ao mesmo tempo, servia para coisas diferentes.
Quando tudo acabou, acendemos um cigarro e ficamos recapitulando baixinho, ali deitados, como chegamos até ali, eu e tu, tu e eu juntos.

dr. know: esse texto foi montado no estilo dada

quarta-feira

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sou historiador
interesso-me por mortos
e coisas mortas
como alimento
como poesia


poema fracasso I

verso livre

coisa boa é dizer
e fazer sem ninguém
entender

poema barraco II

quinta-feira

história cíclica

O cara tem 20 anos, sai da casa da namorada, por quem é apaixonadíssimo, pega a primeira que encontra na avenida, ela buzinou e perguntou onde era tal bar, ele inocentemente aceitou levá-la até lá, para logo estarem se agarrando dentro do carro numa rua bastante movimentada, com a centena de possibilidades de haver uma culpa atrás da árvore, outra na esquina mal iluminada, outra abrindo a janela para o flagra.
O cara tem 27 anos e está confiante em si mesmo, vê o mundo como algo que ele próprio constrói, uma questão de esforço físico, de paciência mental e de não se perder, até que descobre a mulher saindo com um que diz que é amigo, e os outros que se dizem amigos torcem para que ele meta um par de chifres bem dado na ingrata. Ninguém fala nada e ele se perde.
O cara tem 30 anos e acha que passou por todas as mazelas da vida, arranja uma menina para se divertir sans souci, só que engrena um ciúme e a menina vira ponto de honra na sua honradez, e ele começa a falar até que ela entenda as mazelas da vida, mas ela não tem que entender nada e isso o angustia.
O cara tem 35 anos. Toca a vida com a parceira que não é o seu ideal, mas ela também compreende bem o que é ser enganada. Constrói-se um mundo a parte, no qual o capacho da porta serve para limpar as mentiras de todos que entram ali, e geralmente entram só dois, até ela mentir e ele se enganar com a vida. Tudo isso num mundo que, ele já sabia, preza acima de tudo a ilusão.
O cara tem 40 anos e agora entende porque os adultos da sua infância eram tão permanentemente mal-humorados.

segunda-feira

reino dos malentendidos

Eu meio zonzo, mentindo que estou um pingo sóbrio.
Eu, numa trincheira, respirando com a buchada para fora, implorando me mata, me mata.
Uma puta dor de cabeça que vem de alguma volta do cérebro, alguma merda que eu fiz que não me caiu bem, na alegria, na tristeza e no amor.
Um bocejo é pouco para o que eu tenho para te contar sobre o meu sonho, eu era um zumbi e nele eu ria um riso nervoso, ofuscado pela luz, sem dormir, batendo-queixo. Enquanto eu esperava, esperava que viesse um fim que explodisse tudo, eu tu ela vós eles e nós.
Em pedra me transformei, para que, só para causar a impressão de que o meu ser era difícil, turbinado por uma série de coisas como ódio, paixão e poder. Mas eu me segurava para não falar.
Disseram-me que eu tinha que voltar para mim, parar de brigar comigo. Virou um mundo em que eu me amava, só eu, todos eram eu: se algo estivesse em desacordo com isso era tocado no lixo da minha desatenção.
E falar saiu da moda, escrever também, só um bando de chatos ainda fazia isso. Quando o jardim da minha casa cresceu e as plantas bateram na altura da nossa incompreensão, era num grunhido surdo-mudo que a gente se comunicava, se é que aquilo era comunicação.

limpeza

Ontem às dez horas, quando eu cheguei ao fundo do sono, uma voz vinda de onde? me chamou de idiota, imbecil, “o que você está fazendo aí trancado nesse banheiro? bolando a apoteose da tua vida?”
“Foi uma espécie de promessa que eu fiz pra mãe”, justifiquei, mas essa era uma ideia confusa, típica enrolação minha. Dava a entender que a minha mãe compactuava com isso. Na verdade, fiz jura sobre ela após a sua morte.
O único apego real que eu tinha no mundo, a minha fonte de vergonha e medo, dentre as várias coisas que me ensinaram, eu sequei quando ela se foi. Mas estava livre para fazer o que eu quisesse com a minha virtude, conjunto de regramentos morais recebido pela linhagem materna no meu caso. Poderia apagá-la, letra após letra, e nunca mais ter sempre vergonha de ser injusto.
De uma hora para outra algumas pessoas foram saindo de cena como peças de xadrez. Foram enfileiradas em algum lugar que eu não enxergo mais, observando a minha existência e a merda que eu faço com ela. Entre elas, tu.
Fiquei sozinho nesse apartamento, como numa música brega, com as tralhas ao redor (as minhas as tuas as das outras) se amontoando de um modo sufocante, o mesmo efeito de uma estufa ligada num banheiro estreito nesse dia de calor. É inevitável que o momento faça repensar meus motivos de estar aqui, nessa sauna, eu sentado na cadeira de plástico dentro do box do banheiro, um lugar limpo e digno para limpar o corpo, como eu aprendi.

terça-feira

conserva em álcool

pro Tavares

li fingindo os teus poemas, amigo
pois a espuma da cerveja me entretinha mais
era um mundo em branco assim se acabando
feito a vida que nos deram para desperdiçar

imagina um anel de vidro
que um ralo deu sumiço
e voltou logo em seguida
da distância do abismo
todo sujo e enlameado
mas com ares de brilhante
se dizendo fascinado
com os esgotos que elegia

para que insistir se as mulheres não caem mais
se nas nossas misérias todos temos que trabalhar
ou então, aquela alegação
de que poesia não dá pão
.. – os potes do Bar João vão se encher dela
e nada merece mais atenção

segunda-feira



'amam
'todas
' vir
&ir
no
a l é m
//// s
//// i
/// n
///ê
// p
//a
/ m
/e
'o
poema canhão ///////////////////////////////poe
canhão poema ///////////////////////////////////b o m
O ////////////////////////////////////////////// ba!


poema multifuncional I

sexta-feira

novo piu-piu: desafio

lendo pessoa
(que eu li pouco, maior auê em volta)imaginei como entender
-poesia
e depois explicar para você

tem que trilhar na dor
do topo da cabeça ao coração
distorcer egoísta
o que se vive e o que se vê
para entender que o que está ali
não é emoção
sem se entregar

não
é razão
-de um lado
e coração
é de outro modo
de ser e
-sentir
-sem mentir
mentindo

ou de repente fazer uma frase que não tem cabimento
para mostrar que não
é bem assim

na sala iluminada feito noite
sento na cadeira
barra de espaço
a tela se acende
bom dia, mundo

sejamos realistas
ninguém entendeu
só eu

* * *
o fulano de tal
tal autor
deixou em segredo, para a posteridade
riquíssima obra em times news roman
revolucionária à frente do seu tempo
no endereço phdelirante@*mail.com

pensou na posteridade
apesar de negar isso
- estilo blasé -
não deixou filhos
deixou obra

Cristiano Rosa Cruz, no túmulo:
"aqui jaz um infeliz amante da felicidade"

pobre enlutada
na dor, tudo que lhe era muito pessoal
- roupas, objetos, senhas -
lembrava o marido
trazia dor à viúva
melhor esquecer

nem lhe passou pela cabeça que ele escrevia
relacione as colunas

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quarta-feira

vampira ♫♪♪

ferve o sangue
lambe o sangue e a saliva
o inferno pode estar na noite

e parecer uma vampira
deixa eu contar essa história então:

os olhos, faróis
o amor sem dó
fervor em nós

e um corpo sem sol
me atirei aos seus pés

me atirei pelo chão
ela então confundiu lixo com paixão
que se joga fora
- e jogou fora

razão da minha insônia
agora não tenho mais paz
cravou os dentes no meu coração
inflama a ferida

engana a todos com um jeito fatal
no seu estranho conceito, caçar é normal
fica rodando bares atrás de ação
transformou-me em boneco de pura ilusão
em morto-vivo, em algo feito de ar
e mais: em marginal

na lua cheia, a estrela de bar
vem deixar o seu batom
te beber e o teu corpo tomar
[essa frase é da Cláudia]
e te fazer mal
e mau
e mau demais


http://www.youtube.com/watch?v=gacgGWa5L2g
clipe: cláudia barbisan
música: she´s ok

segunda-feira

inseto-eterno

Matei um inseto enorme, desses de dar medo, acordado pelo aquecimento global. Estatelei-o na parede. O bicho grudou na palma da minha mão direita, virou uma gosma que eu limpei com asco.
No banheiro, olhei o cadáver-inseto escorrer, dando voltas feito um tonto até cair no redemoinho do ralo da pia.
Imaginei esse inseto-miserável deslizando suavemente pelo cano e sendo soterrado pelo lodo do fundo do lago Guaíba, seu destino final – lodo para o qual, um dia, fatalmente escorrerão quase todas as coisas que estão próximas daqui.
Pensei no tempo. Milhares de anos à frente, o fóssil-inseto seria descoberto na rocha cristalizada do antigo leito do Guaíba, não mais rio, mas poeira.
O tempo formaria o âmbar em torno dessa jóia-inseto, em exposição permanente num museu do futuro para que os visitantes pudessem vislumbrar como seria a vida na Terra no início do 3º milênio.
Esse inseto-imagem ficaria gravado no cérebro de estudantes impressionados, que contariam aos seus filhos, netos e bisnetos como os animais do passado eram enormes, horríveis e asquerosos como aquele que eles viram um dia no museu.
Assim, o inseto-memorável me sobreviveria. Senti o rumo do esquecimento.
Imaginei o meu corpo numa gaveta. Ao poucos, diluído na água da chuva, empurrado pelo vento, eu desceria em direção ao rio, ajudaria a formar o lodo sobre o casulo-inseto. 10.000 d.C. - depois que o próprio C. já estiver sido esquecido - eu estaria pronto.
Durante uma expedição ao meio do deserto Guaíba, cientistas procurariam o passado no chão, e me removeriam como poeira, sem ligar para a minha existência ou para qualquer outra coisa que existira em torno de mim, e se tornara poeira também.
Apenas o inseto-eterno, no seu brilho máximo, testemunharia um mundo que não existia mais.
* * *
Outra possibilidade, de consolo, seria o inseto escorrer pelo cano e ficar preso no limo da parede de algum esgoto, inchando com a umidade, desmanchando-se e mudando de forma como tudo que tem começo-meio-e-fim. Misturado com outras porcarias, ele torna-se um adubo líquido e negro, fluindo, gotejando com paciência, dando vida a um jardim. Esse é o final que eu quero.

sábado

destino


sequência do vídeo "Destino" (festival do minuto)

quarta-feira

segunda-feira

água na torneira

A gente só está aqui – falando em arte, literatura, música – porque tem água na torneira.
Pausa depois de tal declaração. Fumando, atenção desinteressada dela.
Água sempre foi civilização, ou ao contrário, uma civilização só surge e se mantém por causa do acesso que tem à água. Civilização é o tipo de cultura, e são várias, que dá importância para essas frescuras – arte, poesia, teatro.
As cidades atuais e as do passado têm em comum justamente a água: o número de habitantes e as condições de vida e saúde necessárias para o surgimento de atividades que não sejam as de sobrevivência foram determinados pelo acesso aos recursos hídricos.
Um pingo de história cultural da água: Roma só se expandiu porque edificou, ao longo dos anos, um sistema extenso de aquedutos, construções pelas quais os romanos ficaram famosos, assim como por seus banhos públicos, da mais alta tecnologia para a época.
Em Roma, foi só um pequeno grupo de bárbaros destruir o sistema hidráulico, em 437, para a cidade descer, rapidamente, dos seus mais de dois milhões de habitantes para algumas almas sedentas concentradas nas margens do Tibre. Alguns autores afirmaram que a cidade ficou despovoada por um tempo. Várias cidades e povos, nos mais diversos períodos, floresceram como nunca e morreram por causa da água.
E eu aqui nessa lenga-lenga sobre água, civilização, chatice. Poderia citar muito mais exemplos, sou historiador erudito, mas apostei com a minha namorada que terminaria esse texto - sobre qualquer coisa - em 15 minutos. Uma corrida jornalística que, do meu ponto de vista, fode com qualquer um dos meus ricos argumentos e pretensões de mergulhar na profundidade. Aceitei.
Atalho. Imagino faltando água aqui hoje, agora, a partir desse momento e para sempre, nessa minha cidade alegre que eu namoro pela janela. Dois dias para a água da caixa d'água acabar – estimativa otimista, estamos no meio do carnaval e a cidade está vazia. Mais segunda, terça e quarta até a vontade de abandonar a cidade – dizem que é esse o tempo que sobrevive uma população sitiada sem líquido bebível.
Você pode perguntar onde estão as autoridades que deveriam dar um jeito nisso, mas eu garanto que, nesse exato momento, não há como pressioná-las: o prefeito nunca mais foi visto, a governadora está deprimida, com problemas conjugais. E o presidente, bom, é carnaval, entende.
Sem um gole de água, acho que eu e a minha namorada ficaríamos por aqui mesmo, acabaríamos com todos os víveres, provocando mais sede talvez; ela pintaria no seu atelier e eu leria ou escreveria alguma porcaria. Bebendo a última cerveja. Ouvindo música. Têm mais 2 minutos, mas acabou.

sexta-feira

66


d6is 6lh6s
trecho de vídeo e música de Tzar Bomba

algo delirante ♪♪♫

então não te disseram que eu já fui bem pior?
era só farra e festa e ficar delirando
agora e toda vez vão falar que eu tenho no sangue algum delirante
mas mesmo assim eu não vou ligar

pra paranóia

posso fazer o que é certo,
mas é de outra esquisitice que eu sou fã
eu vou fazer o que eu quero,

até tornar a minha vida um inferno

- se achar o máximo
..num ácido básico -

fora da casa, bem bipolar
....... viro anjo

se eu beijo laranja
ou um diabo verde eu posso virar
..na garganta



tsar bomba

meu magritte

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& meu magritte em movimento (c/ devo, blockhead)