quarta-feira

o sam

Começou a história pelo meio, já na parte em que o Saci puxa as cobertas das crianças que não querem dormir. Falava numa voz branda, algumas vezes alterando para um tom dramático, uma onomatopéia ou um berro. O artista.
Os alunos excitados reagiam aos gritos nos momentos de maior tensão. A maior parte ficava quieta, impressionada. Um aluno corajoso dormia, é verdade, mas Pedro achava que esse não precisava do Saci.
Aplausos no final.
Seria uma manhã sem problemas não fosse a curiosidade do nº 21 da chamada, oito anos, que levantou a mão quando a história terminou e perguntou se a sôra – os alunos constantemente se enganavam, estavam acostumados com professoras – já tinha visto o Saci.
– Não, disse.
Pedro não gostava de mentir para crianças, preferia ser sincero. Mas também não responderia diretamente ao aluno – sim, acho que já vi o Saci – porque isso traria algumas outras perguntas que pareceriam infindáveis e já era quase meio-dia.
O Saci não, mas o Sam sim. Pensou nisso enquanto guardava o material, achou ter dito em voz alta, sem querer, mas olhou em volta e viu que nenhum dos alunos o observava. Enganou-se.
Na saída, depois de ter andado uma quadra, uma aluna o alcançou – a nº 15, nove anos, miúda, que nesse início de ano o acompanhava numa parte do trajeto na saída da escola. Ela lhe perguntou quem era o Sam.
– Quem... rãam – o pigarro era um cacoete – quem?
Defendeu-se com uma pergunta.
– Eu ouvi o senhor falar nele, no Sam.
– Não sei o que é isso – desconversou num tom de voz com bastante autoridade. Irritava-se quando o chamavam de senhor.
Na lotação, em direção ao outro trabalho, ficou se culpando – não acredito que falei nele, sou um idiota mesmo. Lembrou que ela era apenas uma criança e que ninguém dava muita bola para o que as crianças falavam, no seu mundo de invencionices.
Lembrou do Sam por alguns instantes, em como foi difícil se livrar dele.
Imaginava-o um trauma superado. Desapareceu. Era como o seu medo de cachorro na infância: curou-se brincando com um enorme pastor alemão de uma das suas primeiras namoradas. Acompanhou a Luli crescer. Sarou daquilo que, lá pelos sete anos, surgira com um vira-lata pulando sobre ele enquanto corria atrás de uma bola. Livrou-se desse tormento com a Luli.
Mas o Sam foi mais complicado, ele o acompanhou por muito tempo. Durante anos, enxergou-o em vários lugares, no ralo, no vão debaixo da escada, por trás da porta entreaberta da cozinha, nas partes mais chatas de varrer, sob as estantes, em cima do armário, até dentro dos bojos de luz acesos Pedro via a cara sorridente do Sam.

Trabalhou inquieto naquela tarde e voltou para casa pensando na pergunta da menina, a nº 15. Quem era o Sam? Quando o Sam lhe surgiu? Nas suas mais antigas lembranças, o Sam já estava lá, ele era apenas um bebê. De início, assustou-se com o Sam, depois se acostumou um pouco, daí se apavorou novamente quando cresceu e entendeu o que ele queria fazer, mas achou que ele não faria nada e durante um tempo acreditou nisso. Então ele fez. E continuou.
Ninguém via o Sam, só ele. Vinha ao seu quarto durante a noite, só no seu, puxava-lhe as cobertas e ninguém via. Teve que ficar em silêncio, não dizer nada sobre o Sam. Sabia que ele não o perdoaria se falasse para alguém. Era uma história que não podia ser contada, não entenderiam. E ela – lembrou-se da aluna – veio lhe perguntar quem era o Sam...
Uma vez, escreveu algo para um trabalho de colégio, coisa de adolescente descobrindo a literatura. Incluiu nele um personagem que vagamente lembrava o Sam. Arrependeu-se. Culpou-se muito por esse erro. Preferiu não tocar mais no assunto. Pensamentos profundos ficavam melhores quietos, não deveriam ser mostrados. Procurou outras histórias para substituir essa que ele não podia contar.
Aproximou-se da educação infantil, achando o público ideal para ouvi-lo. Na universidade, interessou-se pelo uso da narrativa na construção da noção de mundo das crianças. Considerava uma arte contar uma história bem contada, ver como isso estimulava a imaginação. Para ele, as crianças sempre tentavam materializar suas fantasias de alguma forma.
Achou graça quando a professora da cadeira de literatura infantil disse que para contar uma história era preciso vivenciá-la, senti-la. Como se nada realmente pudesse ser apenas inventado. Divertiu-se com um professor suíço falando do processo do conhecimento humano: para explicar a matéria, ele usava uma boneca de pano sem rosto, amarrada com cordas elásticas no teto, na qual ele batia com a mão seguidas vezes. A boneca se espatifava na parede oposta, num squash sem sentido, marcando a retórica do professor e aguçando a imaginação de quem o assistia.
Descobriu que era um bom contador de histórias. Foi só aí que aprendeu a abstrair o Sam. Era uma questão de mudar o olhar e, principalmente, não desviá-lo. Não teve mais medo de demorar os olhos naquele ponto escuro da sala, de fixar a atenção nele e deixar de ver com medo aqueles olhos sempre o espreitando.
Acostumou-se com o Sam de novo, tolerou-o durante mais alguns anos até que passou a ignorar a sua presença.
Na rotina do seu trabalho, pensou várias vezes para que serviria uma história que não podia ser contada. Mas logo suspendia o juízo porque isso o fazia lembrar dele. E sabia que o Sam não era uma história, ele não era nada.
Sorriu um pouco quando reafirmou essa conclusão – ele não era nada – mais uma vez, agora no chuveiro de casa, relaxando do dia estressante de trabalho. A gata Rebecca fazia traquinagens pela casa. No dia seguinte, sábado, haveria festa na escola e todos deveriam estar lá pela manhã. Resolveu esquecer um pouco qualquer assunto e se preparar para dormir. Acordaria muito cedo para organizar da festa, com o auxílio de uma térmica grande e chimarrão.
Na madrugada, a luz que entrava pelas frestas da veneziana formava um rosto no teto do quarto, um velho conhecido seu. Os galhos das árvores do quintal lembravam o tempo que lhe faltava para podá-los. Eles batiam em ritmo compassado na janela, algo relaxante, de início, mas que se transformou numa gargalhada debochada no sonho de Pedro, uma boca enorme que lhe sussurrava alto, repetidas vezes, no ouvido: “te conheço? não te conheço? te conheço sim...” E assim ia.


As atividades da manhã foram de recreação, um trabalho que Pedro considerava como o de babá: fulano desce daí, sicrano ralou o joelho, larga ela, menino, e por aí vai. Não tinha muita paciência para esse tipo de atividade, por isso ficou feliz quando viu que o tempo estava fechando e a chuva não demoraria. Pediu para os alunos recolherem os pertences na sala de aula para ir embora, fez a chamada – nº 13, nº 14... Quando terminou, uma aluna boboca, chata, chegou perto ameaçando lhe fazer uma pergunta. Fugiu, fingiu-se atarefado.
Em alguns minutos escureceu e a diretora autorizou que se tocasse o sinal. As crianças saiam pelo portão e corriam pela avenida para fugir da chuva, entrando nos carros, nas vãs, nas ruas periféricas do bairro em busca do caminho de casa, o vendaval de folhas e poeira as acompanhando, dobrando a esquina junto ela, com as suas brincadeiras e os seus ruídos esganiçados.
Olhou para cima e viu nuvens pesadas correndo a mil, se desmanchando em gotas grossas. Um raio iluminou e trovoou no céu negro. Os poucos alunos que o acompanhavam foram, aos gritos, se espalhando. Pelo canto do olho, alguns metros atrás, notou a nº 15. Apressou o passo, mas logo a chuvarada veio e ali ficou só ele e quase mais ninguém, num breu confuso, se protegendo. A chuva apertou e o dia escureceu mais ainda. Parecia noite fechada com cheiro de chuva. Assim estava muito fácil ver o Sam, ele em cima do poste, ele sorrindo na árvore, sentado sobre o muro da casa, esperando junto à cerca do terreno baldio, espreitando, pronto, estava muito fácil.

Pedro não foi trabalhar na semana seguinte. Participaria de um curso e foi liberado. Sabia que era sempre um transtorno na escola quando alguém faltava, já que não havia substituto e o grupo de funcionários era bem pequeno. Mas a boa escola incentivava a capacitação dos professores. Deu graças a deus por essa pausa: estavam apenas no início do ano e ele já se sentia cansado.
O primeiro dia do encontro foi suspenso por pura esculhambação da organização do evento. Chegou no horário indicado e não havia nada, somente uma funcionária constrangida informando que não haveria nada. Voltou para casa e tirou a manhã para tomar um café sossegado, ler o jornal, deitar mais um pouco com a mulher, relaxar, fazer tudo com calma.
Olhou pela janela o muro coberto de heras da casa do vizinho: nem percebeu como elas cresceram. Imaginou que um colchão só de heras, sem nenhuma outra planta, seria ótimo numa tarde de primavera, ele e a mulher atirados, imóveis, sobre suas folhas frescas, sem preocupações, sob o sol. Imaginou algo quente no verde escuro das heras do vizinho sem saber o porquê. Mas essa fantasia bucólica não combinava com aquela manhã gelada, incomum para aquela época, o chão molhado onde tudo parecia musgo. Percebeu um movimento leve nas folhas e desviou o olhar.
Abriu o jornal, folheou algumas páginas e parou, leu um nome se repetindo e a nº 15 veio a sua cabeça. A reportagem de meia página lhe deu a certeza.
Apavorou-se: o Sam voltou.