sábado

nadismo

Definitivamente, eu não escrevo sobre a minha vida e as minhas opiniões, como as pessoas se acostumaram a fazer: imagino, invento e minto sobre o mundo que está aí.

quinta-feira

sul

O entardecer mais escuro que eu já vi. Escurecendo até não ver mais coisa alguma. O fim da luz no horizonte, já pálido, sumiu. O vento úmido fez esquecer tudo em volta, agora só estava eu. Andava sem rumo, eu andava no escuro. Por que andar então? Senti os meus pés congelados. Devia desistir, fui seguindo, não havia o que fazer. Sem reclamação. Não tinha para quem reclamar, a não ser para mim e eu não estava com intenção nenhuma de perder tempo com isso. Até porque achava que não havia muito tempo, mas eu não tinha ideia do quanto era. Tentação de culpar alguém, de praguejar e blasfemar, mas eu já havia desistido de fazer coisas assim para sempre. Lembrar da minha trajetória até aqui: não havia mais história que me interessasse. Completamente nu, nu de tudo, de roupas, não as via, de pensamentos, de ideias. Despido do mundo e da vida. Esperança de que a situação mudasse, nem pensei nisso, esperança não serve para nada. Tinha a noção que eu andava. Estou no caminho, que bom, só isso. Impressão de ver uma luz, uma ilusão, mas esses acidentes acontecem, não me impressionam mais. Fui indo. Passou a época em que eu me enganava. Inventei um mundo com o material que me cercava: árvores negras, solo escuro, céu de breu, mesmo o vento era preto, feito fumaça. Uma sombra veio falar comigo: eu estou te cuidando. Respondi que não precisava de nada. Queria saber se eu estava perdido, mas não havia perdição neste mundo vasto, apenas liberdade, sem escolha. Não era de lugar algum, eu andava com a escuridão em volta.
O telefone tocou e era você me acordando – como foi difícil acordar – para dar bom dia e me desejar um ótimo trabalho. Fui ao banheiro feito um zumbi, acendi o fogo para o café no modo automático, comi e bebi, vesti a roupa que já estava separada, um robô, olhei o relógio, atrasado, tinha que ir. Esqueci tudo o que eu fiz antes de abrir a porta e sair. Indo. Ônibus, trabalho, intervalo, trabalho, almoço, ônibus, trabalho, intervalo, trabalho, ônibus, casa.
Oi, telefone, já cheguei. Comendo algo. Que tu vais fazer? Sei lá, me preparar para dormir. Lavei a louça. Nada de interessante na tevê, mesmo assim ficou ligada. Naveguei durante horas na frente do computador pensando que eu fazia isso todo o dia.
Dormi sem registro de sonho. O telefone tocou e era você me acordando para desejar um bom dia. Ônibus, trabalho, intervalo, trabalho, almoço, ônibus, trabalho, intervalo, trabalho, ônibus, casa.