segunda-feira

eva-mulá

Bereshith, mesmo Xerazade não nasceu do nada. Vinha das mais antigas estirpes de narradores, das melhores linhagens de lobos uivantes. Falava manso igual à mãe, bradava áspero como o pai; a memória virtuosa veio de uma cruza de elefantes na família. As palavras que lhe saía tinham o poder de concretizar tudo o que havia e o que não havia no mundo. E também o poder de mudar.
As histórias que contava – desde a mais tenra idade – eram a escrita do luar, riscadas no céu num crescente, zunindo, de tirar tampões dos ouvidos, de abrir qualquer olhar.
[...]
texto longo

sábado

da revolução

O Estado arromba a porta, os guardas estrUpam a guria que guardava a guaiaca como a vida, eles a abrem e não acham nada.

quinta-feira

reza

talvez a gente vá
talvez a gente volte
talvez a gente fique
talvez não tenha nada
talvez unamo-nos a tudo, humanos
talvez penar
talvez sumir

certeza temos só de quem teve
a audácia de achar que sabe como
as coisas funcionam ou funcionarão
no plano secreto do invisível

terça-feira

bichice

se és tu\poeta
eu sendo\poeta
tu és meu\inimigo
porque poetas, quando em encontro
são como cães com cadela no cio
brigando pelo mesmo osso
assustando de medo a pombinha
metendo o pau um no outro
opa... daí não é cachorro
não tem coisa mais bicha que a poesia

sexta-feira

encontro

Só há uma viagem que sabemos como termina
e nela terminamos sozinhos.

Lá pelas tantas, dois viajantes de nações diferentes podem – depois de muito chão trilhado, cada um no seu caminho – percorrer a mesma estrada no mesmo dia. Eles conversam, tentam resolver os problemas de comunicação e, realmente, se dão muito bem em alguns assuntos em comum, em que se reconhecem como iguais.
Mas como superar as diferenças de entendimento, aquelas que nos levam a enganos? Pois é impossível lhes arrancar os olhos da cara, olhos que viram tanto e que filtram a luz do mundo. Cada um entendeu o que quis.
Muito cordialmente, trocaram presentes, os artigos mais baratos de suas riquezas, e prometeram se reencontrar daqui a sabe-se lá quantas luas, antes de retomarem a solidão dos seus destinos.
Se a experiência, mistura de envelhecimento e orgulho, dá sentido às coisas ao redor, ela permite ver que os viajantes nunca se encontram. Na verdade, nenhum viajante abandona a sua terra natal.

quinta-feira

uma frase

Poesia - essa frescura - é estar numa sala escura, pequena, fechada e, de repente, uma janela imensa se abrir para a paisagem de um jardim infinito, com mil variações de tons, luzes, formas, detalhes e miragens (incluindo os restos fedorentos de um passarinho que o gato da vizinha matou).

sexta-feira

retrato com fundo verídico

fundo fundo fundo fundo fundo fundo fundo
fundo fundo fundo fundo fundo fundo fundo
fundo fundo cabelo cabelo fundo fund fundo
fundo fund cabelo testa belo und fund fundo
fundo undo cabelo testa tesa belo f do fundo
fundo fundo cabel sobrancelhas fundo fundo
fundo fund ca belo olho nariz olho fud fundo
fundo cabelo checha nariz bocha fund fundo
fundo fu cabel hecha bocaa boche fun fundo
fundo um belo eixo queixo fundo fund fundo
fundo fundo f cabe lo pescoço fud fud fundo

domingo

soneto de sábado

soneto ao avesso, desandado e com mote no final
I.
 II.

terça-feira

tudoeu

ninguém seria tu, se tudo fosse eu
se tudo fosse tu, eu seria ninguém

quinta-feira

cassino

uma bala pra uma
outra pra outra
as balas que faltam
é o que me mata

sábado

bizarro normal ♪

se existe ilusão, se estragou
ela me levou
se existia cor, coração
ela me levou

agora sou um monstro que mostra o motor
de tudo que funciona com amor e dor

bizarro é o meu estado normal
meu estado bizarro é normal
anormal é o nosso estado normal
quem sou eu pra você?

por que tanto ódio, que tal um la la love you...
a vida sacana me levou
sem freio, sem ilusão
lá vou eu vou

quarta-feira

eunice fazendo biscoito

Vou aí te dar um abraço e te encontro ronronando. A sonda não funcionou, o alimento está te afogando. Afago o teu cabelo em que fizeram uma trancinha, quase não tem mais cabelos, nem concebo o que é ter 96 anos. Não consigo imaginar o que passa pela tua cabeça agora. Estás sonhando? Com quem?

Lá tem música. Contigo se vai boa parte das lembranças, quantas lembranças! Quantos bolos, hein? Das últimas que me acompanharam desde sempre, que me testemunhou, que me chamou de filho. Como é ter 96, profe? Lá pelas tantas, viver só serve para o mundo nos calejar. Levanto o dedo e pergunto, mas tu não respondes mais.

Por que as pessoas querem viver tanto? Uma coisa que eu não quero e tu não querias. Então está aí, chegando a hora, não sei no que estás pensando.

Vai o dedo no dó, os outros no mi e no sol: acorde!

sábado

existencialismo

Não entregue a outra pessoa o prazer de vivenciar a sua existência, esse prazer é único e pessoal.

Não deixe ninguém lhe levar em viagens alheias: siga o seu caminho e não se perca, por mais prazeroso que seja se perder.

Mesmo se a sua essência for dolorosa.

sexta-feira

terra

tem um céu feito de sombras e não de ar
ou de nada do que o nosso é feito
a música é uma sucessão de silêncio e som
colocados de forma organizada, apenas isso
vive-se num intervalo de tempo que se inicia
após o presente e não tem um fim definido
o arrependimento não faz sentido
na terra da nenhuma-culpa, o paraíso

sábado

o amor que dei para mim

amor que odeio, amor que não me ama e quer me
destruir
aos poucos
especializei-me em ti, dizia, o meu show
era só
para poucos
até que todos se foram e fiquei por aqui
com esse amor
pouco

mas por mais que seja pouco, ainda é amor
que se arrasta e me faz seguir
como cachorro de rua
a vigiar o nada a existir

domingo

a esmo

os homens são incapazes de fazer algo direito
tentam aprender competência com as máquinas
mas se frustam e entregam a elas seus afazeres vitais
daí - um belo dia - os computadores traem e enganam

* * *

fica combinado que não falamos mais sobre isso:
viver é justamente esquecer que vamos morrer
ou sempre estar lembrando disso, veladamente

quarta-feira

de ilusão

No país que eu imaginei um dia, no desenvolvimento da sociedade que lá vivia, a primeira fase era dominada por um pensamento mágico. O culto a uma deusa – dela não se pronuncia mais o nome – era dominante. Dessa antiga religião nada se sabe, mas mesmo hoje alguém deitará resmungando sonolento o nome dessa deusa em vão, repetidas vezes, sem saber o porquê, até adormecer.

quinta-feira

shine ♪

shy shine
shine a light, here I go
to addiction to you
and what I'm gonna do?
I didn't pay my dues, dudes

shine, hit the light
of your ambitious love
there's nothing so cruel
the best way to make a blues
yeah, then she makes me blue
why did I allow her to leave me blue?
now I want to shINE


para a Monstro Motor

segunda-feira

happy dancing

Estudo para "Happy" da Monstro Motor em cima de flip book de Julian Opie.

freak out ♪

I drive so badly
when the road bends
when you refuse me

I’m completely lost in the wrong lane
you confusing me

but since now I decided to become a loser

I don’t expect your understanding
there’s no excuses

all the old rules will turn upside down
wouldn’t be cool?
everything will be nice
light and high

and I’ll freak out

letra e música pra Monstro Motor

terça-feira

exercícios de desligamento

Básico intensivo passando para o intermediário.
Algumas atividades de olhar: morro, árvores, vento, beija-flores, a fumaça do cigarro, muitas nuvens, o mar, o mar avançando, uma bunda e dois peitos, o teto, um livro chato, emails sem sentido, o desejo leve por algumas, cerveja, rede, gugudadás, longas caminhadas, algumas fantasias sobre outras, ficar bonito e interessante, sorrir sem gargalhar.
Amanhecer, fazer as necessidades, comprar pão, preparar o chimarrão, correr na praia, entediar-se, almoçar, dormir, exercitar-se, entediar-se novamente, pensar nela excitada, fumar mais um cigarro, exercitar o vazio e dormir.
Como teste, o vento sul a trouxe, linda e triste com a vida, conversação, outra língua lambendo a minha. Mas a rotina é lúcida: ficamos juntos por algum tempo e depois voltamos. Combinamos ficar sem lembrança, em silêncio. Uma canção na cabeça. Lembrei da música que eu estava ouvindo ontem: bem que eu queria que o tempo não existisse só para ter você aqui. Engano completo: eu não tenho nada e você não existe mais. Mesmo em pensamento não existe mais, o vento mudou, o calor sumiu e tudo passou. Passei.
A fumaça dança no ciclone anunciado para hoje, a areia some com o que fizemos por lá, a vizinha gargalha até perder o fôlego, um prazer estranho em estar ali, sozinho, cada vez mais quieto, com o som das ondas livres batendo na praia.